Maria, “terra” da Encarnação

Data:
18/08/2024

“O Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49)

A Assunção de Maria foi, durante muitos anos, uma verdade de fé aceita pelo povo simples. Só em meados do século passado proclamou-se como dogma de fé.

É preciso levar em conta que uma coisa é a verdade que se quer definir e outra, muito diferente, a formulação em que se introduz esta verdade. A Assunção é uma “realidade” que quer balbuciar algo que se encontra mais além dos conceitos e das palavras: que Maria entra plenamente na Vida de Deus.

Certamente soaria estranha para a mentalidade bíblica a definição do dogma (“A Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celeste” – 1º. nov. 1950). Simplesmente porque foi formulada a partir de conceitos filosóficos e teológicos completamente alheios à sua maneira de pensar. Para a antropologia bíblica o ser humano não é um composto de “corpo e alma”, mas uma única realidade que se pode perceber sob diversos aspectos, mas sem perder nunca sua unidade.

Não podemos entender “literalmente” o dogma da Assunção. Pensar que um ser físico, Maria, que se encontra em um lugar, a terra, é transladada localmente a outro lugar, o céu, não tem sentido. O próprio papa João Paulo II afirmou que o céu não é um lugar, mas um estado. Em linguagem bíblica, “os céus” significam o âmbito do divino; portanto, Maria está já “nos céus”; Maria “desapareceu em Deus”.

Quando o dogma fala de “corpo e alma”, não devemos entendê-lo como o material ou biológico por uma parte, e o espiritual por outra. O dogma não pretende afirmar que o corpo biológico de Maria está em alguma parte, mas que todo o ser de Maria chegou à mais alta meta.

Realiza-se em Maria a situação final, já dentro da história, situação prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade de toda a sua vida.

A Assunção de Maria é considerada, também, como antecipação da nossa ressurreição, que seremos ressuscitados em Cristo. Portanto, a glória de Maria não a separa de nós, mas se une mais intimamente a nós. Maria na glória concretiza, de modo eminente, nosso próprio destino futuro; ela vive agora em plenitude aquilo que nós, um dia, iremos viver. A Assunção é realidade compartilhada, solidária.

Ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos, dos pobres e excluídos… Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”.

Crer na Assunção de Maria implica crer na exaltação dos pequeninos e humilhados, dos pobres esquecidos, dos injustiçados sem voz, dos sofredores sem vez, dos abandonados sem proteção, dos misericordiosos descartados, dos mansos violentados…

O mistério da Assunção vem, portanto, afirmar que a biografia de Maria começa na eternidade. Maria “cheia de eternidade”, vivendo na mente e no coração de Deus. Vem de Deus e volta para Deus. Ela está situada na encruzilhada da história salvífica: AT e NT. Com seu “sim” radical, a distância entre Deus e o ser humano foi quebrada, o divino se humanizou e o humano se divinizou. Mulher nova e livre, em Maria ouvimos a resposta perfeita, o “fiat” da criatura dito ao Criador; ela é a mulher da oblação. Nela a Trindade vê sua obra levada à plenitude. Seu “sim” tornou possível a Encarnação. Nela, a ação da liberdade humana e da graça divina harmonizam-se perfeitamente.

O “Amém” de Maria, seu “Fiat”, é um Amém ao “Sim” de Deus à humanidade. Deus é para nós o “Sim” eterno, ativo e criativo.

Nosso “Abbá” é aliança fiel, permanente, definitiva. Sua oferta de Aliança de amor sempre paira sobre a humanidade. Por isso, derrama seu Espírito com abundância sobre toda a terra e sobre “todo ser vivente”.

Maria disse “fiat” (“faça-se”) a essa oferta. Nela, a humanidade, cada um de nós, é chamado a dizer “fiat”. O “sim” proferido por ela é o melhor que a humanidade apresentou a Deus e desencadeou outros inúmeros “sins oblativos” na história.

Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito, “Terra” da nova criação, Templo do Mistério.  Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história.

Ela não é um instrumento mudo, não é um meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que, através dela, o mesmo Filho Eterno pudesse entrar na história.

Em Maria descobrimos aquilo que, na essência, todos somos. Não devemos nos conformar em olhar Maria para ficarmos extasiados diante de sua beleza. O que descobrimos nela, devemos também descobrir em nosso próprio ser. O que importa realmente é que em Maria e em todo ser humano há um núcleo intocável que nada nem ninguém poderá manchar. O que há de divino em nós será sempre imaculado. Tomar consciência desta realidade, seria o começo de uma nova maneira de entender a nós mesmos e de entender os outros.

Maria é grande em sua simplicidade e não temos nada que acrescentar ao que ela foi desde o princípio. Basta olhar para o seu verdadeiro ser e sua maneira original de se fazer presente junto aos outros para, então, descobrir o que há de Deus em seu interior; isso é que sempre será puríssimo, imaculado. Se descobrimos isso nela, é para tomar consciência de que também está presente em cada um de nós.

De nada nos servirá descobrir a pérola em Maria se não a descobrimos também em nós mesmos. Somos milhões de diamantes que habitamos esta terra, embora cobertos de terra e barro.

Contemplar Maria, assunta ao céu, é des-velar (tirar o véu) a nobreza humano-divina escondida em nosso interior.

Porque se fez presente a Deus, Maria se faz também presente na vida das pessoas, através da atitude de serviço, de uma maneira sempre mais criativa e atenta; presença que se faz manancial de vida para os outros, tornando-se, ao mesmo tempo, amiga, irmã e mãe de todos.

A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desperta e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias  que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.

Texto bíblico: Lc 1,39-56

Na oração: Deus continua enviando mensageiros para comunicar-nos sua vontade; o que nos falta é ter o espírito desperto para discernir e reconhecê-los. As pessoas dispostas, os cristãos vigilantes, os santos e santas se encontram com muitos mensageiros que lhes comunicam mensagens do Senhor. Discernir é realizar uma limpeza de ouvidos para escutar cada vez mais fielmente os mensageiros (anjos) do Senhor.

– “Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. “Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor diante daquilo que a vida vai nos oferecer para viver.

Compartilhar

LEIA MAIS

29 set 2024

Preconceito e escândalo: atitudes que matam

22 set 2024

O poder atrofia a criança dentro de nós

15 set 2024

O seguimento de Jesus e a pretensão do nosso ‘ego’

08 set 2024

Abrir-se à Vida

01 set 2024

Coração compassivo, mãos oblativas

25 ago 2024

Provocativas palavras

18 ago 2024

Maria, “terra” da Encarnação

11 ago 2024

Ser “pão” no “Pão da Vida”

04 ago 2024

De qual “pão” temos fome?

31 jul 2024

Inácio de Loyola: um santo dos “tempos novos”

28 jul 2024

A dádiva do pão

21 jul 2024

Descanso, um espaço aberto ao discernimento

14 jul 2024

Seguir Jesus: fome e sede de estradas

07 jul 2024

Em Nazaré, Jesus “humanizou-se” na escola do trabalho

30 jun 2024

São Pedro e São Paulo: inspiradores da Igreja sinodal