“Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9)
Do pão de trigo ou cevada para o pão do sentido de vida doada; do alimento de cada um para a circularidade do alimento partilhado, em pequenos grupos, sem templo, na gratuidade e frugalidade. Este é o sentido do texto joanino, proposto para este domingo. De todos os gestos realizados por Jesus, durante sua atividade profética, o mais recordado pelas primeiras comunidades cristãs foi, seguramente, uma refeição multitudinária, organizada por Ele no descampado, nas proximidades do lago da Galiléia. É a única cena relatada em todos os evangelhos.
O conteúdo do
relato é de grande riqueza e cheio de simbolismo. Seguindo seu costume, o
evangelho de João não o chama “milagre”, mas “sinal”. Com isso nos convida a
não ficarmos nos fatos externos que são narrados, mas descobrir, a partir da
fé, um sentido mais profundo. Longe do templo e das autoridades judaicas,
seguido por uma multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa
dele, aberta a um processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para
todos. O congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é
substituído pelo congraçamento em torno a Jesus, no lugar onde Ele estiver, com
a multidão que o segue. Mas, enquanto a Páscoa no Templo favorece os
controladores dele, a Páscoa em torno de Jesus favorece e engrandece a todos.
Jesus ocupa o
lugar central na cena; ninguém lhe pede que intervenha. É Ele mesmo que olha,
intui a fome daquela multidão e ativa a necessidade de alimentá-la. Como
alimentar tanta gente no meio do descampado? Os discípulos não encontram
nenhuma solução. Felipe diz que não se pode pensar em comprar pão, pois não têm
dinheiro. André sugere que se poderia partilhar o que havia, mas só um menino
tem cinco pães e dois peixes. Que é isso para uma multidão?
Segundo João,
enquanto Filipe justifica a impossibilidade de solução, André procura uma
alternativa e se depara com cinco pães de cevada e dois peixinhos nas mãos de
um menino. Filipe ocupa seu tempo e sua inteligência em buscar justificativas
para o impasse e desculpas para não ser responsabilizado. André, no entanto,
encara a realidade e se ocupa na busca de solução. Encontra um sinal. Há pão, é
de cevada, não de trigo, é pouco, mas o menino, pessoa que está começando a
vida agora, coloca à disposição.
Naqueles
vastos campos da Galiléia, Jesus propõe a grande mesa da comunhão universal, a mesa
“fora dos templos” que inclui a todos, sem distinção. O gesto da benção
instaura o horizonte da partilha, em que os alimentos são destinados à
necessidade de todos, por meio da corresponsabilidade dos participantes no
banquete da Criação, sobre cuja mesa Deus preparou pão em abundância para
todos.
Todos
acompanham com atenção os gestos de Jesus: coração em ação de graças, olhos
fixos, ao mesmo tempo, no pão, enquanto o parte, e na multidão ao seu redor.
Primeiro dá graças à Fonte da vida. Segundo, contempla o pão, fruto da terra e
do trabalho de muitos homens e mulheres, que deve ser partido e compartilhado.
Terceiro, convida a repartir e assegura-se de que a distribuição é justa.
Jesus
dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de cinco mil pessoas famintas.
É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É pouco, mas é dom de Deus, e dom
pode-se multiplicar, pois a graça partilhada tem alcance ilimitado. Nós,
geralmente, só damos graças quando temos em abundância, porque, a nosso ver, é
a abundância que significa graça.
Depois da ação de graças, o pão se multiplica, tem para todos, o quanto necessitam, e ainda sobra abundantemente. Quanto mais se partilha, mais se tem. A fome desse momento foi saciada, mas a vida continua. Jesus ensina como repartir, isto é, como as pessoas devem proceder na relação de umas com as outras. A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas. Jesus é o primeiro responsável, mas quer partilhar com os seus. Isso exige a participação de todos.
A cena é
fascinante: uma multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é
capaz de sentar-se em grupos ordenados sobre a relva do campo, iguais, sem
divisão em hierarquia e partilhando uma refeição simples e gratuita. Não é um
banquete de ricos; não há vinho nem carnes. É a refeição frugal das pessoas que
vivem junto ao lago: pão de cevada e peixe defumado. Os que tinham algo para
comer também foram repartindo com os outros. Na realidade, o verdadeiro milagre
foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre os
pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar gratuitamente
com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso sim é
milagre.
A comunhão
bíblica se realiza entre os “distantes”, por meio de um gesto que não é de
poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de
fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem. O dinheiro
continua hoje sendo a causa de toda desigualdade. Tudo tem um preço, incluídos
os “bens espirituais”. A gratuidade e a partilha são gestos que estão
desaparecendo de nossa sociedade. Jesus abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado,
focado na apropriação e na acumulação.
Só se fará
efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do Reino. Sem
oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não há possibilidade
de construção do Reino de Deus. Em cada migalha de pão, em cada pedaço de
peixe, há uma história de amores e trabalhos que vão passando de mão em mão,
sem cobiça devoradora. Os bens deste mundo carregando dentro uma vocação
fraterna e universal. São dons para todos. Nesta refeição de todo o povo sobre
o campo verde não se discrimina ninguém, não se pergunta a ninguém pelo seu
passado, sua profissão ou sua situação moral e religiosa. Todos são acolhidos
como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos a
compartilhar sua mesa. Todos se sentem pessoas dignas e amadas.
Esta é a utopia
do Reino: tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os
produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas,
numa relação harmoniosa entre si e com Deus, sem exclusões, competições nem
privilégios. A sensibilidade solidária de Jesus situa tudo na lógica do amor, que é a única força transformadora
da história.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: A
oração é também questão de densidade de vida, de humanismo, de ativar a
sensibilidade para com aqueles que não têm quem os defenda; é revelar que em
nosso peito bate um coração de amor infinito, capaz de vibrar e mobilizar-nos
em favor dos outros. A oração implica entrar em sintonia com o coração
compassivo de Deus voltado para a miséria humana.
- Como
seguidor(a) de Jesus, qual é a sua “lógica” diante do contexto social de
exclusão e de miséria? A do Reino ou a do mercado neoliberal?
- A pobreza, a
miséria, a fome... despertam em você uma “santa indignação” ou uma acomodação
doentia?
- Os gestos de
partilha e solidariedade são um modo de proceder contínuo em sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro, sj
Foto: