“O cego jogou o manto, deu um salto e foi até Jesus” (Mc. 10,50)
Bar-Timeu: “bar”, em aramaico, significa “filho de”. Ele é um homem sem nome, conhecido simplesmente como filho de Timeu. Está sentado num ponto estratégico, mendigando às margens da estrada. Todos os peregrinos passam por ali para ir a Jerusalém. Marcos nos fala da “marcha decidida”, encabeçada por Jesus, em direção à Cidade Santa. Esta marcha estremece, dá medo, pois não se realiza nas melhores condições. Em três ocasiões anteriores Jesus já tinha predito sua paixão e morte em Jerusalém, nas mãos das autoridades, civis e religiosas. Os discípulos, também com medo, o seguiam; pouco a pouco muitas pessoas vão se somando à peregrinação: uma “multidão considerável”, nos diz o evangelista.
É o caminho da fidelidade no seguimento de Jesus. Identificar-se com Ele é levar até as últimas consequências o compromisso em favor da vida e dos mais excluídos.
À beira deste caminho, um cego está atento, pois é difícil que alguém passe por este ponto sem perceber a presença dele. Só ele sabe o incômodo que é estar cego, esmolar, vivendo fora da cidade, à margem do caminho.
A hora é agora e não há tempo a perder diante de tamanha oportunidade: a passagem do “Filho de Davi”.
Aquele que não via, vê Alguém muito especial que passa; e Aquele que passa é o Filho de Davi, o Messias aguardado por tantas gerações.
Ao mesmo tempo, o cego reconhece que Ele tem poderes terapêuticos e que pode curá-lo de sua cegueira.
Assim, do meio do barulho dos passos, da balbúrdia e do vozerio das pessoas, brota, da boca do cego, uma invocação incontrolável, cada vez mais persistente; uma oração, um ato de fé:
“Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim”.
Surpreende-nos a variedade de nomes e qualificativos em sua maneira de dirigir-se a Jesus. Certamente já ouvira falar sobre Ele e reconhece que Ele vem da parte de Deus e que age com autoridade.
Soa o primeiro “kyrie eleison”, que depois repetiremos constantemente nas comunidades cristãs.
Os “guardiões da ordem” o repreendem para que se cale esta voz incômoda que vem da margem.
Aqueles que acompanham a Jesus não querem saber nada dos problemas do cego. É como se dissesse: “na situação em que te encontras não tens direito a protestar nem a gritar. Aguenta e cala-te!”. São “muitos” que fazem caminho com Jesus, mas não têm a sensibilidade de descobrir a necessidade dos outros.
Mas a voz suplicante chega aos ouvidos de Jesus; este deixa-se afetar por ela e “se detém” no caminho.
Jesus interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Ele ouve e pede para chamar justamente aquele cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia.
O relato deste domingo tem pouco a ver com outros relatos de cura em Marcos.
É Jesus que chama o cego, pergunta o que ele quer, admite o título de “Filho de Davi”, não o afasta da multidão, a cura não é acompanhada de nenhum gesto, não o manda guardar silêncio a respeito da cura...
Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
Aquele que vê com os olhos da fé, quer ver com os olhos físicos. O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua riqueza, sua segurança, seu teto... e entra na luz do olhar de Jesus.
Bartimeu não está mais excluído, às margens da estrada. Agora, ele se encontra no centro da cena: face a face com o “Filho de Davi”. Na verdadeira fé a luz interior envolve todo o seu corpo. Jesus acende os sentidos do cego e este recupera sua visão. Curado, ele se incorpora à marcha e segue alegremente Àquele que vai na frente.
A partir de agora ele poderá ver, não apenas o rosto das pessoas, a cor de uma flor, o sorriso de uma criança, o encanto da aurora ou o pôr-do-sol, mas, sobretudo, poderá ver a própria existência, o sentido das coisas, da história, dos acontecimentos humanos e da vida...
Finalmente, Bartimeu poderá decidir aonde ir, o que fazer da própria vida e como dirigir-se ao próprio Deus. Jesus não o segura; não o convida a segui-lo, mas oferece a capacidade de ver na direção certa; oferece-lhe a liberdade; ajuda-o a descobrir que, o desejo de viver, de caminhar, de gritar, nasce da fé.
E, naquela liberdade total, interior, faz a sua opção decidida: “...e seguia-o pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...
Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; a estraneidade se tornou familiaridade; a liberdade se tornou gratidão; a solidão se tornou seguimento...
E tudo isso começou de um grito... e de um salto.
A capa, que antes o acompanhava e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representava é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor...
Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo ver, salta ainda mais para um novo ser.
Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.
O relato evangélico deste domingo também nos ajuda a recuperar o sentido de nossa visão, normalmente possessiva, estreita e interesseira. Nossa maneira de ver, nesta cultura da imagem, está muito condicionada pelos grandes meios de comunicação, que constantemente nos transmitem informações sobre a realidade, segundo a visão e o interesse dos donos. Gerou-se nas sociedades atuais uma maneira “comprada de ver”.
Por isso temos de libertar nossos olhares, tanto para olharmos a nós mesmos como para não entrarmos nas expectativas daqueles que nos olham com olhos que não respeitam nossa própria realidade pessoal.
É preciso olhar de outra maneira para ver e oferecer uma visão alternativa da realidade, para saber o que vivemos e a partir de onde o vivemos. Mas isso supõe um longo processo contemplativo que é inseparavelmente ascético e místico, íntimo e social, pessoal e comunitário.
Todos participamos de algum jeito das diferentes cegueiras deste mundo. Necessitamos de colírios que nos devolvam a vista, como a Igreja de Laodiceia (Apc 3,18).
Todos precisamos libertar o olhar de nossas cegueiras para contemplar a realidade como Deus a olha.
Precisamos voltar a receber, muitas e muitas vezes, esse olhar primeiro e originante de Deus, que pôs seus olhos sobre a criação, sobre cada criatura, fixa-se nela e a vê como boa e preciosa.
Nossa presença consiste em recuperar esse olhar de benção sobre nós e sobre o mundo. Com muito mais motivo sobre aqueles rostos que não encontram razões para serem considerados bons, formosos e atrativos.
São muitos os que, à beira da estrada, clamam para serem escutados e olhados de maneira compassiva, sem a frieza do julgamento, sem intolerância e preconceito.
É preciso “cristificar” nosso olhar para ativar uma sensibilidade solidária e comprometida.
Textos bíblicos: Mc 10,46-52
Na oração: Orar com os olhos é dar o salto Do simples “ver” a um sereno e profundo “olhar”. E deste, a um “sentir-nos olhados” muito mais amorosamente...
Ao orar, precisamos “olhar” e “sentir-nos olhados”.
“O olho através do qual eu vejo Deus é o mesmo olho através do qual Deus me vê” (Angelo Silésius).
Para orar, basta aprender a olhar e a sentir-nos olhados.
Se pretendemos aprender a “olhar com amor”, sintamo-nos olhados desse modo.
- Além de olhar tudo com paz, se você quiser converta cada olhar em oração; olhe tudo com carinho.
- Recorde todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.
- Procure sempre que seu olhar seja límpido, sem filtro, isto é, isento de preconceitos.
- Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt. 5,8).